quinta-feira, 15 de outubro de 2009

João Calvino e a Predestinação


Estes são alguns trechos da Instituição da Religião Cristã, de João Calvino, retirados do livro III, capítulos XXI, XXII e XXIII, onde Calvino trata da doutrina da predestinação.

Ninguém que queira ser considerado homem temente a Deus ousará simplesmente negar a predestinação, pela qual Deus adota a uns para a esperança da vida e destina a outros à morte eterna; mas muitos a cercam de sutilezas, sobretudo os que intentam que a presciência seja causa da predestinação. Nós admitimos ambas as coisas em Deus, mas o que agora afirmamos é que é de todo infundado fazer uma depender da outra, como se a presciência fosse causa e a predestinação, o efeito. Quando atribuímos a Deus a presciência, queremos dizer que todas as coisas estiveram e estarão sempre diante de seus olhos, de maneira que, em seu conhecimento, não há passado nem futuro, mas todas as coisas estão presentes. E de tal forma presentes que não as imagina como uma espécie de idéias ou formas, à maneira que nós imaginamos as coisas cuja recordação nosso intelecto retém, mas que as vê e contempla como se verdadeiramente estivesse diante dele. E essa presciência se estende por todo o orbe da terra e sobre todas as criaturas. Chamamos predestinação ao decreto eterno de Deus pelo qual determinou o que quer fazer de cada um dos homens. Porque Ele não os cria com a mesma condição, mas antes ordena a uns para a vida eterna, e a outros, para a condenação perpétua. Portanto, segundo o fim para o qual o homem é criado, dizemos que está predestinado à vida ou à morte [...]

Paulo, quando ensina que fomos escolhidos em Cristo antes da fundação do mundo (Ef.1.4), certamente prescinde de toda consideração de nossa dignidade. Porque equivale a ter dito que, como o Pai celestial não achou em toda a descendência de Adão quem merecesse sua eleição, pôs seus olhos em Cristo, a fim de eleger como membros do corpo de Cristo aqueles a quem havia de dar vida. Estejam, pois, os fiéis convencidos de que Deus nos adotou em Cristo para sermos seus herdeiros, porque não éramos, por nós mesmos, capazes de tão grande dignidade e excelência. O qual o apóstolo mesmo nota também em outro lugar, quando exorta os colossenses a dar graças ao Pai que nos fez aptos para participar da herança dos santos (Cl.1.12). Se a eleição de Deus precede a graça pela que nos fez idôneos para alcançar a glória da vida futura, que poderá encontrar em nós que o mova a nos eleger? O que eu pretendo se verá de modo mais claro ainda por outro passo do mesmo apóstolo: "Escolheu-nos antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e sem mancha diante dele" (Ef.1.4); no que opõe o beneplácito de Deus a todos os nossos méritos [...]

Assim, na Epístola aos Romanos, na qual repete este tema mais a propósito e lhe dá continuidade mais por extenso, o apóstolo nega que sejam israelitas todos os que descendem de Israel (Rm.9.6-8); porque, embora eles, por causa do direito da herança, fossem todos benditos, nem todos, no entanto, chegaram igualmente à sucessão [...] Paulo, ainda que conceda que a posteridade de Abraão seja santa por causa do pacto, mostra que muitos deles eram estranhos e nada tinham que ver com essa posteridade, e isso não somente por terem degenerado de maneira que de legítimos se transformaram em bastardos, mas porque a especial eleição de Deus está acima de tudo, e só ela ratifica a adoção divina. Se uns fossem confirmados por sua piedade na esperança da salvação e outros fossem excluídos só por sua defecção e afastamento, com certeza Paulo falaria muito tola e absurdamente, transportando os leitores à eleição secreta. Mas se é a vontade de Deus – cuja causa nem se mostra nem se deve buscar – a que diferencia uns dos outros, de tal maneira que nem todos os filhos de Israel são israelitas, é em vão querer imaginar que a condição e estado de cada um tem seu princípio no que têm em si. Paulo vai adiante quando aduz o exemplo de Jacó e Esaú (Rm.9.10-13). Pois, uma vez que ambos eram filhos de Abraão, e estando ambos encerrados simultaneamente no seio da mãe, o fato de a honra da primogenitura ter sido transferida a Jacó foi como uma mutação prodigiosa, pela qual, no entanto, Paulo mantém que a eleição de um foi testemunhada, assim como a reprovação do outro. Quando se pergunta pela origem e causa disso, os doutores da presciência a põem nas virtudes de um e nos vícios do outro. Parece-lhes que com duas palavras resolvem a questão, e afirmam que Deus mostrou, na pessoa de Jacó, que escolhe aqueles que previu que seriam dignos de sua graça; e, na de Esaú, que reprova aqueles que previu que seriam indignos dela. Isso é o que essa gente ousadamente se atreve a sustentar. Mas que diz Paulo? E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem haviam praticado o bem ou o mal, para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama; já fora dito a ela: o mais velho servirá ao mais moço; como está escrito: a Jacó amei, mas detestei a Esaú (Rm.9.11-13). Se a presciência valesse de alguma coisa para estabelecer a diferença entre esses dois irmãos, a menção do tempo certamente seria inoportuna. Suponhamos que Jacó tivesse merecido a dignidade da eleição pelas virtudes que haveria de ter no futuro; por que Paulo diria que Jacó ainda não havia nascido? Ademais, por que teria acrescentado, inconsideradamente, que Jacó ainda não fizera bem algum – porque seria fácil replicar que, não estando nada oculto a Deus, a piedade de Jacó estivera sempre presente na ciência do Senhor. Se as obras merecessem a graça, é de todo certo que seria igual para Deus valorizá-las antes de Jacó nascer ou quando já estivesse velho. Mas o apóstolo, prosseguindo com o tema, resolve a dúvida e ensina que a adoção de Jacó não se deveu às obras, mas à vocação de Deus. Para as obras, o apóstolo não estabelece tempo, passado ou vindouro, e, ao opor expressamente as obras à vocação de Deus, destrói a propósito um com o outro, como se dissesse: devemos considerar qual foi a boa vontade de Deus, e não os que os homens aportaram por si. Por fim, é evidente que, pelas palavras "eleição" e "propósito", o apóstolo quis remover desta causa todas as causas que os homens costumam imaginar à margem do secreto desígnio de Deus [...]

Tratemos agora dos réprobos, dos quais o apóstolo também fala ali, na mesma ocasião. Pois assim como Jacó, sem ter ainda merecido coisa alguma com suas boas obras, é recebido na graça, do mesmo modo Esaú, sem ter cometido ofensa alguma, é rejeitado por Deus (Rm.9.13). Se voltássemos nossos olhos apenas para as obras, faríamos grave injúria ao apóstolo, como se não tivesse visto o que é evidente para nós. Ora, prova-se que ele não o tenha visto, porque insiste particularmente nisto: em que, antes de fazer bem ou mal algum, um foi escolhido, e o outro, rejeitado; de onde se conclui facilmente que o fundamento da predestinação não consiste nas obras. Além disso, depois de ter suscitado a questão de se Deus é injusto, não alega que Deus pagou a Esaú segundo sua malícia – o que seria a mais clara e certa defesa da justiça de Deus -, mas resolve a questão com uma solução bem diversa: que Deus suscita os réprobos para exaltar neles sua glória. E finalmente põe como conclusão que Deus tem misericórdia de quem deseja, e que endurece a quem lhe apraz (Rm.9.18). Não vemos, então, como o apóstolo entrega um e outro somente à vontade de Deus? Se nós, pois, não podemos assinalar outra razão de Deus fazer misericórdia aos seus senão porque lhe agrada, tampouco disporemos de outra razão para rejeitar e afastar os outros senão pelo mesmo beneplácito. Pois quando se diz que Deus endurece ou que faz misericórdia a quem lhe agrada, é para advertir os homens de não buscarem causa nenhuma fora de sua vontade [...]

Muitos, fingindo que querem manter a honra de Deus e evitar que se lhe faça alguma acusação falsamente, admitem a eleição, mas de tal maneira que negam que alguém seja reprovado. Mas nisto se enganam grandemente, porque não existiria eleição, se, por outro lado, não houvesse reprovação. Diz-se que Deus separa aqueles que adota para que se salvem. Seria, pois, um notável desvario afirmar que os outros alcançam por casualidade ou adquirem por sua indústria o que a eleição dá a poucos. Assim, aqueles por que Deus passa ao eleger, reprova-os; e isto só pela razão de que Ele os quer excluir da herança que predestinou para seus filhos. Não se pode tolerar a obstinação dos que não permitem que se lhes ponha freio com a Palavra de Deus, tratando-se de um juízo compreensível seu, que até os próprios anjos adoram.

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