domingo, 25 de outubro de 2009

João Calvino, o Cristão.

Este artigo faz parte de uma coletânea de textos do Rev. Wilson Castro Ferreira que explicam a respeito da vida do famoso reformador João Calvino.

Há um perfil de João Calvino, obra rara, ao que parece, criação de desconhecido artista germânico, do século dezoito. O quadro é quase todo formado pela combinação de textos bíblicos. Advinha-se a intenção do artista imaginoso, qual seja destacar uma das feições mais impressionantes do reformador genebrino — homem impregnado da Palavra de Deus..

Um outro quadro (e são muitos os retratos de Calvino) desta vez de um artista flamengo, do século dezessete, nos apresenta Calvino, de pé, manuseando as Escrituras cercado de seus livros. Dir-se-ia que este último retrato comenta o primeiro: João Calvino não foi apenas o homem embebido da Palavra de Deus, mas o arguto inquiridor das verdades nela contidas e possuído de apaixonado zelo pela fiel interpretação e observância dela.

"Com respeito a minha doutrina, tenho ensinado fielmente e Deus me tem concedido a graça de escrever o que tenho escrito, tão fielmente quanto estava em mim fazê-lo. Não falsifiquei um só texto das Escrituras, nem dei-lhe interpretação errada, tanto quanto é do meu conhecimento. Embora pudesse ter buscado um sentido sutil, se o tivesse estudado com sutileza, subjuguei debaixo dos pés essa tentação e tive em mira sempre a simplicidade" (Carta Vol. IV, pg. 375).

Calvino, o cristão, decorre desse apego à Palavra de Deus e portanto a Deus mesmo. Quantas vezes a sua vida esteve em perigo, por causa dessa fidelidade? Opôs-se tenazmente à participação da Ceia do Senhor por pessoas que estavam excluídas dela. Acontecesse o que acontecesse, Calvino firmava-se irredutível naquilo que lhe parecesse a fiel interpretação da Palavra. "Eu jurei", dizia ele, "que prefiro morrer a ver a Santa Ceia profanada." (This was John Calvin, pg. 159).

Embora John Calvino tenha escrito comentários de quase toda a Bíblia, a sua própria vida, que procurou fosse expressão dinâmica, existencial, legítima da vontade de Deus nela revelada é sem dúvida o maior comentário das Escrituras. O seu cristianismo não era teórico, abstrato, dogmático apenas. Calvino viveu inteiramente a legenda tão conhecida e que figura em um dos seus selos: "Cor meum tibi do pronpte et sincere". Vejamos algumas das principais facetas desta vida norteada por tão alta insígnia.

1 - HONESTIDADE E FIRMEZA

A verdadeira alma de João Calvino se encontra estampada na vasta correspondência de milhares de cartas que escreveu e que cobrem um longo período de mais de 30 anos, desde os tempos de estudante de direito em Orleans, 1528 até 1564, no seu leito de morte. A variedade mesma dos destinatários aponto para uma característica muito significativa desse grande cristão. As cartas nos oferecem um corte transversal da sociedade do seu tempo onde a influência do cristianismo reformado penetrara.

E para Calvino grandes e pequenos, reis e nobres, condes e duquesas; príncipes e também humildes obscuros fiéis cristãos, perseguidos pelo evangelho, prisioneiros de Cristo, sentenciados a morte pelo nome de Jesus, todos são objeto de seu interesse; estão ligados a ele pelo amor, de Cristo Jesus.

Sente o coração sangrando de dor quando pobres waldenses são massacrados por causa de sua fé; aflige-se e preocupa-se com o destino da Inglaterra, Polônia, Alemanha, bem como da sua querida, França, as quais tanto deseja ver ao lado da Reforma; nas cartas sempre transparece aquela sinceridade, aquela coerência do homem que tendo um compromisso de lealdade com Deus é fiel em tudo a si mesmo.

Ternura è severidade são comuns nas suas cartas. Não poupa no grande amigo confidencial, o inesquecível Farel, se lhe parece que deve repreendê-lo. Na mesma alta em que o adverte de que não deve subir ao púlpito para a própria edificação, evitando excessos no sermão, trata-o de “mais excelente e íntegro, irmão".

Calvino não regateia elogios ao grande Melanchton cuja nobreza admira, cuja cultura exalta freqüentemente sem rodeios, quando julga que o professor de Wittemberg por qualquer conveniência torna-se conivente com o erro. “Tu sabes”, diz Calvino a Melanchton "que os nossos deveres de nenhum modo dependem de nossa esperança de sucesso, mas que cumpre-se realizar o que Deus de nós exige, mesmo quando no maior desânimo, com respeito aos resultados". (Cartas Vol. III pg. 158). “Não nos honra muito”, afirma em outro lugar, "que recusemos assinar, com tinta, aquela mesma doutrina que muitos santos hão não hesitaram testemunhar com sangue.” (Cartas Vol. pg. 468).

Importante, era sem dúvida, para a Causa da Reforma o apoio dos soberanos; de todos, que estavam em posição de destaque, mas nem por isso deixa Calvino de exortar com veemência o rei de Navarra, apontando-lhe os erros e concitando-o a abandonar o pecado e cuidar da sua salvação.

Talvez nenhuma coisa fosse mais do agrado de Calvino do que um acordo com Lutero, em todos os pontos da doutrina; a ele se dirige em termos respeitosos e afetivos, tais como: “mais excelente pastor da Igreja Cristã. Dr. M. Lutero, meu mui respeitado Pai.” (Cartas Vol. I pg. 440), mas desde que Lutero atacava com rudeza os crentes de Zurique aos quais Calvino procurava atrair para a mesma união, não se intimida de acusá-lo de tirania, que julga perigosa na Igreja de Cristo.

Uma das decisões mais difíceis de Calvino foi com respeito a sua volta a Genebra, depois de ter sido de lá escorraçado. Farel escreve-lhe encarecendo a necessidade de sua volta. Calvino responde-lhe: "Se tivesse a escolha a minha própria disposição nada me seria mais desagradável do que seguir o seu conselho. Quando me lembro, porém, que não me pertenço, ofereço o meu coração, em sacrifício ao Senhor. (Cartas Vol. I pg. 280).

Agradar aos homens, sim, se possível. E ninguém sabia ser mais respeitoso e cavalheiro do que ele, todavia a sua fidelidade a Deus, a sua firmeza na busca dessa vontade estava acima de quaisquer preferências ou respeito humanos. No entanto o homem assim tão ousado, por vezes, e por isso ainda, grande na sua ousadia era ainda maior na sua humildade.

2 – HUMILDADE

Dotado de um natural retraimento e timidez que ele mesmo reconhecia; vítima de enfermidades que o atormentavam diariamente, não lhe era fácil conter os impulsos de sua irritação tantas vezes desafiada. E é com tristeza que confessa essa falta. Escrevendo a Farel depois da luta que manteve com Caroli, um dos oponentes mais desleais, diz com muita mágoa:

"Eu pequei gravemente não sendo capaz de me manter dentro dos limites; a ira se apoderou de minha mente de tal modo que eu derramei amarguras por todos os lados" "...quando cheguei à minha casa fui tomado por um extraordinário paroxismo de modo que não achei outro consolo senão nos suspiros e lágrimas". (Cartas Vol. I pg. 154)

Calvino desejava muito casar-se, mas deixa de aceitar a proposta de uma "donzela de nobre estirpe e com fortuna acima da minha condição", (diz ele).

Note-se que depois de muitas lutas, em que a vida de Calvino esteve em risco, sob ameaças constantes, os seus tenazes e desleais inimigos, os libertinos, foram completamente desmantelados e Calvino obteve absoluto domínio da situação.

Tornou-se a voz mais autorizada em Genebra.

Continuou, todavia, sempre humilde, despretensioso, modesto, frugal. Nem mesmo o título de cidadão de Genebra procurou para si. Muitos refugiados já o tinham, ele o recebeu por deliberação espontânea do Concilio, no fim de sua vida.

Vivendo pobremente, e por vezes em aperturas financeiras, os inimigos, contudo, espalharam a noticia de que Calvino era muito rico e possuidor de larga área de terra. Nada mais longe da verdade. “O meu testamento vai provar que não é verdade”, dizia ele. E o seu testamento o provou. "Todo mundo sabe como vivo frugalmente em minha casa". Grande parte da mobília de que se servia, pertencia à República de Genebra, era emprestada. (Cartas, notas no rodapé, Vol. IV pg. 367) "Nem a mesa à qual comemos, nem a cama em que dormimos nos pertence. Os meus íntimos sabem que não possuo um pé de terra, e, que nunca tive dinheiro para comprar um acre de chão (This was John Calvin pg. 134).

O homem que formulou com exímia maestria e profundo conhecimento da Bíblia, a Doutrina da Depravação Total do Homem e da condição irremediável desse homem, sem a graça de Deus, vivia conscientemente essa doutrina.

Modesto ao extremo, descrente dos próprios méritos, refugiava-se inteiramente em Cristo Jesus e na Sua Graça misericordiosa. "Tudo que fiz", dizia ele, "não vale nada. Os ímpios serão capazes de agarrar essas minhas palavras com avidez, mas eu repito: não fiz nada digno de qualquer coisa. Sou uma miserável criatura, mas posso dizer com segurança, que sempre desejei fazer o que é bom e que os meus pecados sempre me desgostaram, e que a raiz do temor de Deus tem estado no meu coração" (Cartas Vol. IV pg. 375).

Essas palavras adquirem uma força muito maior, se lembrarmos que elas foram ditas no seu leito de morte, quando Calvino mesmo afirmava sentir que era chegada a sua hora de partir para a eternidade. Calvino não desejou honras no seu enterro e fez específicas recomendações a esse respeito. As recomendações foram cumpridas fielmente, pois todos sabiam da sinceridade delas. "Desejo que meu corpo seja sepultado, depois de minha morte, de maneira comum para esperar o dia da bendita ressurreição" (Cartas IV pg. 366) Para Calvino a glória única que lhe agradara é a da gloriosa ressurreição.

Nenhum comentário: