terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O impacto de Calvino em Genebra e além

A catedral protestante de São Pedro, em Genebra, fotografada ao estardecer.
Legenda: A catedral protestante de São Pedro, em Genebra, fotografada ao estardecer. (Keystone)

A celebração do quinto centenário do nascimento de João Calvino é uma ocasião propícia para rememorar a profunda influência que o reformador exerceu na Genebra de seu tempo.

E também para reconhecer a repercussão que seus escritos e propostas teológicas tiveram em outros rincões da Suíça e, com o tempo, mundo afora.

Por Aharon Sapsezian*

Calvino era francês e sua vinda a Genebra em 1536, aos 27anos de idade, foi fruto de um acaso. Imbuído das idéias humanistas da Renascença e simpatizante das posições anti-papistas do frade alemão Martinho Lutero, ele era mal-visto na França católica do rei Francisco 1°.
Sua primeira vinda à Suíça, em 1535, foi a Basiléia, cidade que já aderira à reforma protestante sob a influência de João Ecolampádio e Oswaldo Micônio. Calvino aí permaneceu durante cerca de um ano e aí escreveu a primeira versão, em latim, de sua Instituição da Religião Cristã, obra que se tornaria a referência teológica maior das igrejas reformadas "calvinistas" no mundo inteiro.

28 anos em Genebra

De volta à França, no curso de uma prolongada viagem em direção de Estrasburgo (que desde 1529 também abraçara as idéias de Lutero), Calvino teve de pernoitar em Genebra, onde Guilherme Farel vinha lutando há algum tempo para implantar a reforma. Quando soube da presença de Calvino na cidade, foi logo vê-lo e, à força de argumentos de toda sorte, conseguiu convencê-lo de ficar aí algum tempo a fim de ajudá-lo a consolidar a obra iniciada por Farel.
O "algum tempo" se prolongou e, salvo uma interrupção de dois anos e meio (quando foi banido da cidade pelo Conselho que o acusava de ingerência da igreja na esfera civil), Calvino passou o resto de sua vida, 28 anos, em Genebra. Tempo suficiente para aplicar na igreja e na sociedade seu ambicioso projeto de Reforma.
Com o apoio das autoridades civis, Calvino usou de sua liberdade de ação para reestruturar a igreja agora desvencilhada das amarras de Roma, promover a pregação do Evangelho exclusivamente segundo os ensinos da Bíblia, estabelecer novas diretrizes litúrgicas e sacramentais (só dois sacramentos: batismo e Santa Ceia) e capacitar os pastores (vários deles ex-padres) para sua nova missão. Formulou também normas de disciplina ética, de dedicação ao trabalho, senso de responsabilidade e austeridade de vida a serem aplicadas aos fiéis em geral a fim de coibir o que ele considerava certas tendências "libertinas" na sociedade.

Disciplina mas não despotismo

No que diz respeito a essa disciplina calvinista, de rigor não raro excessivo, ela era ressentida por alguns como atentatória à liberdade cidadã.
A noção, porém, de que Calvino exercia um poder despótico ou que pretendia criar em Genebra uma teocracia protestante, é simplesmente caricatural. Esquece-se que um dos pilares de sua teologia era a Sola gratia, ou seja, é unicamente pela generosa misericórdia de Deus que somos salvos e não por qualquer desempenho ético de nossa parte.
Já o caso do teólogo Serveto, acusado de heresia e condenado à pena capital pelo Conselho da cidade, é mais ambíguo. Calvino omitiu-se de intervir, como poderia, para evitar a aplicação da pena. Seria uma prova de conivência do reformador com a intolerância doutrinária própria do seu tempo? Muito tempo depois, em 1903, os herdeiros genebrinos do reformador fizeram ato de penitência por essa omissão com uma estela no local da execução de Serveto.
Por outro lado, essa disciplina calvinista explica em boa parte a prosperidade econômica que a Reforma trouxe a Genebra. Não é por acaso que certos estudiosos, Max Weber e outros, vêem no calvinismo o germe do capitalismo moderno.

Pólo de irradiação

De qualquer modo, com Calvino a Reforma triunfou em Genebra e permeou a sociedade a ponto de a cidade tornar-se um pólo de irradiação do calvinismo às cidades vizinhas e muito além. A ela afluíram refugiados franceses huguenotes em grande número, mormente com a revogação do Edito de Nantes em 1685. A "Roma protestante" tinha agora gravadas em seu emblema as palavras ostensivas Post tenebras, lux (Depois das trevas, luz).
Mas, para o humanista Calvino a Reforma não era apenas um programa eclesiástico. Ela almejava transformar a sociedade. A Academia que ele contribuiu a criar em Genebra, e da qual o primeiro reitor foi Teodoro de Beza, amigo fiel de Calvino, não visava somente a preparar jovens para o ministério da Igreja. Era também para formar uma elite esclarecida e apta para "a governança civil" e, como tal, serviu de modelo para instituições análogas em outras cidades européias.
Essa Academia tornou-se, na realidade, o núcleo da hoje prestigiosa Universidade de Genebra. O Hospital Geral de que se dotou a cidade em seu tempo atendia os menos favorecidos da sociedade e demandava a generosidade e solidariedade social dos crentes em geral. Muitos atribuem a criação da Cruz Vermelha Internacional de hoje, sediada em Genebra, à influência moral do calvinismo.

Obra em 60 volumes

Mesmo enfermo nos últimos anos de sua vida, Calvino continuou ocupado em escrever (sua produção literária é imensa e uma recente edição de suas Obras Gerais conta nada menos de 60 volumes), em pregar o Evangelho (em regra, várias vezes por semana), em ensinar teologia e Bíblia na Academia e, muito importante, a manter a assídua correspondência com outros promotores da Reforma no país e no estrangeiro a fim de confortá-los e orientá-los na sua árdua e nobre tarefa.
Foi por correspondência que redigiu a Confissão de Fé adotada pela Igreja Reformada da França, seu país natal. Pouco afeito a honras e a privilégios, Calvino morreu sem grande alarde em 1564, aos 55 anos, e foi enterrado em sepultura sem lápide e de localização hoje incerta.
Meio milênio passado, a marca da influência de Calvino e do calvinismo permanece viva e atuante. E isso apesar do inelutável processo de desgaste religioso por que passam todas as sociedades de nosso tempo.
Genebra, por exemplo, é hoje uma metrópole secularizada, mundana, mais conhecida pelas suas instituições financeiras e órgãos internacionais do que pela piedade cristã de seus cidadãos.
Movimentos migratórios recentes fizeram com que mais da metade da sua população é católica. E a participação dos fiéis protestantes aos cultos dominicais declina a olhos vistos.
Não obstante, para lembrar e afirmar as raízes calvinistas da cidade, aí estão localizados o imponente Muro da Reforma, o Museu Internacional da Reforma; o emblema da cidade proclama ainda o sempiterno Post tenebras lux, e os membros do Conselho da cidade continuam a prestar seu juramento de posse na Catedral "de Calvino". E não é por nada que o Conselho Mundial de Igrejas, cuja criação deve muito a vultos do protestantismo reformado (ou presbiteriano), tem sua sede em Genebra.
No plano internacional, as igrejas que se reclamam da herança de Calvino se estendem hoje desde a América do Norte até a Coréia do Sul, e desde a Holanda até a África do Sul. Só no Brasil há pelo menos cinco denominações reformadas (presbiterianas) com um total de mais de um milhão de adeptos. E uma das mais prestigiosas instituições de ensino superior no país, a Universidade Mackenzie, tem origem no presbiterianismo norte-americano.

75 milhões de herdeiros

A Aliança Reformada Mundial, sediada em Genebra, representa 75 milhões de cristãos que se reconhecem herdeiros de Calvino, dispersos em 107 países. Em termos de amplitude de expansão do protestantismo originário da reforma do séc.16 no mundo, só a Igreja Luterana se compara com a Igreja que se inspirou na obra de Calvino.
Poucas são as figuras na história da igreja que exerceram o impacto profundo e duradouro de João Calvino. A celebração do quinto centenário de seu nascimento é pois uma homenagem mais que merecida ao homem de têmpera, mas também abnegado, que desencadeou, de Genebra, a dinâmica de um processo de reafirmação da livre graça de Deus a toda humanidade e de desafio a viver perante esse Deus com sincera gratidão e agudo senso de responsabilidade humana.

*Pastor e teólogo, ex-diretor do Programa de Formação Teológica do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra.

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