quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A FALTA DE LÓGICA DOS OPOSITORES DA JUSTIFICAÇÃO SOMENTE PELA FÉ, À PARTE DE QUALQUER OBRA DA LEI

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O leitor deve já perceber com que gênero de equanimidade e justiça maquinam hoje os sofistas contra nossa doutrina, quando dizemos que o homem é justificado tão-somente pela fé [Rm 3.28]. Não ousam negar que o homem é justificado pela fé, uma vez que essa afirmação é reiterada na Escritura com tanta freqüência. Mas, visto que em parte alguma o termo somente é expresso, não admitem que se faça tal afirmação. Porventura é assim mesmo? Mas, que replicarão a estas palavras de Paulo onde ele contende que, a não ser que essa justiça seja gratuita, não pode ser justiça da fé? [Rm 4.2-5]. Como é possível que com obras o que é gracioso se enquadre? Além disso, com que astúcias descartam o que Paulo diz em outro lugar [Rm 1.17]: que a justiça de Deus se manifesta no evangelho? Se a justiça se manifesta no evangelho, certamente que ela não é mutilada, nem pela metade; ao contrário, aí ela é plena e absoluta. Portanto, a lei não tem lugar nessa justiça, nem prevalecem com seu subterfúgio, não só falso, mas até nitidamente ridículo, no tocante à partícula de exclusividade – somente. Ora, porventura não a atribui exclusivamente à fé ao remover toda virtude das obras? Pergunto: o que estas expressões significam: "Sua justiça se manifestou sem a lei" [Rm 3.21]; "O homem é justificado gratuitamente" [Rm 3.24]; e "sem as obras da lei"? [Rm 3.28].

Neste ponto, eles contam com engenhoso subterfúgio; ainda que eles mesmos não o tenham cogitado, pelo contrário, tomaram-no de Orígenes e de alguns dos antigos, no entanto é algo muito tolo, a saber: gritam que as obras excluídas são as cerimoniais da lei, não as morais. Tão proficientes se tornam com suas assíduas disputas que, na verdade, nem observam os rudimentos primários da dialética! Porventura pensam que o Apóstolo está a delirar quando, como prova de sua doutrina, adiciona estas passagens: "O homem que fizer estas coisas por elas viverá" [Gl 3.12]; e "Maldito é todo aquele que não cumprir todas as coisas que foram escritas no livro da lei" [Gl 3.10]? A não ser que estejam fora de si, não poderão dizer que se promete vida aos cultores de cerimônias, e que somente são malditos seus transgressores. Se estas passagens devem ser entendidas em relação à lei moral, não há dúvida de que também as obras morais sejam excluídas do poder de justificar.

Ao mesmo propósito contemplam estes argumentos de que Paulo faz uso "uma vez que por meio da lei advém o conhecimento do pecado" [Rm 3.20], portanto não a justiça, porque "a lei opera a ira" [Rm 4.15]; logo, não a justiça, porque "a lei não pode tornar segura a consciência" [Gl 3.21]. por isso, não pode conferir a justiça, porque "a fé é imputada para justiça" [Rm 4.5]; portanto, a justiça não é galardão de obra, ao contrário, é concedida não como devida, porque "somos justificados pela fé, cortada é a jactância" [Rm 3.27,28]; se uma lei fosse dada que pudesse vivificar, a justiça procederia, na verdade, da lei, mas Deus a todas as coisas encerrou debaixo do pecado, para que a promessa fosse dada aos que crêem [Gl 3.21,22]. Repliquem agora, se podem, que estas coisas se reportam às cerimônias, não às questões de natureza moral. Com efeito, até mesmo as próprias crianças zombariam de tão grande impudência! Portanto, quando se priva a lei da faculdade de justificar, isso deve ser visto como se referindo à lei em sua totalidade.

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, pp. 217-218)

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