quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Teologia do corpo

O plano de Deus para a vida física do homem inclui muito mais do que bem estar, saúde e prazer.
Por Christianity Today
Eric Liddell, célebre atleta e missionário britânico dos anos 1920, proferiu uma frase que o cinema imortalizou no filme Carruagens de fogo: “Eu creio que Deus me criou com um propósito, mas ele também me fez veloz. E, quando eu estou correndo, sinto o seu regozijo”. A afirmação, feita numa época em que a separação entre corpo e alma era uma trincheira praticamente intransponível para os cristãos, provocou espanto pela ousadia – ainda mais quando se sabe que o mesmo Liddell perdeu um ouro olímpico quase certo nos Jogos de 1924, em Paris (França), simplesmente porque a prova seria realizada num domingo e ele se recusou a profanar o dia do Senhor. Mesmo assim, o pensamento estabelecido há mais de dois mil anos pelo poeta latino Juvenal – “Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são” – ainda provoca controvérsias. Séculos e séculos de uma pregação cristã que atravessou a Idade Média afirmando a pecaminosidade do corpo físico ainda encontram ecoam nos dias de hoje, apesar do hedonismo e do culto ao bem estar da sociedade contemporânea.


O benefício de tais controvérsias é que elas forçam os cristãos a seriamente avaliar e definir o lugar adequado do corpo material, tanto no contexto de suas práticas espirituais quanto da teologia. Afinal, é através deste sensacional sistema que nada mais é que um amontoado de elementos como oxigênio, carbono, nitrogênio e hidrogênio que, segundo a Palavra de Deus, o ser humano glorifica ao Senhor ou afunda-se no pecado. Então, qual o papel do corpo na vida do crente? Deve-se apenas mortificá-lo, como pregavam os ascetas, ou é legítimo cuidar dele com esmero, posto que é o templo do Espírito Santo? É uma discussão que já acontece tardiamente. De certo modo, os evangélicos estão mais interessados no corpo físico hoje como nunca antes. A atenção com a cura física e com as manifestações corporalmente visíveis do Espírito Santo há muito têm prevalecido na vertente carismática da fé cristã. Contudo, em nossos dias, o que se vê é uma revigorada preocupação com a existência corpórea inserindo-se em meio ao movimento mais abrangente.
Este florescente interesse nas necessidades e expressões do corpo assume variadas formas. Há que se ver, por exemplo, a renovada ênfase evangélica com respeito às dietas, ou ainda a emergente consciência quanto aos dilemas éticos na produção, distribuição e consumo dos alimentos. Indubitavelmente, nossa atração pelos esportes manifesta a seriedade com a qual se pode desfrutar os prazeres que advêm do vigor físico. Talvez, o mais importante indicador quanto ao interesse dos evangélicos pelo corpo seja o resgate das disciplinas espirituais, com o auxílio de escritores como os americanos Dallas Willard e Donald Whitney. O primeiro, em particular, através de livros como O espírito das disciplinas (editado no Brasil por Habacuc/Danprewan) e A renovação do coração (Mundo Cristão), tem articulado uma espiritualidade com base nas Escrituras que insere-se em cada parte da pessoa humana.
Talvez, esse renovado interesse pelo corpo tem sido mais evidente – e problemático – no ensino evangélico sobre sexo e sexualidade. Principiando nos anos 1970, os evangélicos experimentaram o que alguns estudiosos têm descrito como uma revolução sexual protestante. Manuais destinados a maximizar o prazer conjugal entre os crentes inundaram o mercado de livros evangélicos. Procurando justificar o prazer físico em meio a estereótipos de puritanismo e repressão, os crentes passaram a aceitar interpretações literais de trechos bíblicos como Cantares de Salomão que noutros tempos, fariam corar de vergonha pastores e fiéis. O argumento basilar é de que não apenas Deus fez o sexo bom, mas também que os cristãos, mais do que qualquer outro grupo, deveriam desfrutar o sexo de modo mais frequente e prazeroso – uma espécie de apologética sexual, digamos assim. No mínimo, trata-se de um cristianismo expansivo, que tenta mover-se para fora dos muros da igreja, alcançando todas as áreas da vida do servo de Deus, especialmente o corpo.
ABORDAGEM FRAGMENTADA
O aspecto adverso é que os evangélicos têm sido, por vezes, desajeitados nos esforços de ver como a Palavra de Deus deveria moldar a carne. Em geral, as abordagens bíblicas quanto ao corpo têm se desenvolvido de um modo um tanto fragmentado. Qualquer que seja a tendência em voga, em determinado momento, os cristãos prontamente reagem com uma versão supostamente “aprovada por Jesus”. Quando as dietas tornaram-se uma coqueluche, na década de 1980, logo surgiram uma série de regimes voltados aos crentes, alguns até com receitas bíblicas inspiradas no Antigo Testamento ou nos tempos apostólicos, com ênfase no consumo de grãos e carnes magras. Quando a ioga despertou grande interesse no Ocidente, rapidamente apareceram técnicas de relaxamento com base na meditação bíblica e em cânticos espirituais. E, quando a revolução sexual desfralfou suas bandeiras, os cristãos buscaram garantias bíblicas para poder se entregar aos prazeres da carne sem medo de pecar.
Embora o cristianismo claramente vá de encontro a cada aspecto da vida física, esta fragmentada abordagem à teologia do corpo apresenta desvantagens significativas. Além da compreensão igualmente fragmentada do corpo que advém de desempenhar apenas diversas funções e atividades, a ausência de um cenário teológico abrangente ameaça reduzir ensinamentos éticos e cuidados pastorais ao mero legalismo. A Igreja perdeu a noção de que o cristianismo propõe um modo de vida distinto, ao invés de apenas uma lista moralizante do que pode ser feito ou não pelo cristão. Além disso, dividir a teologia do corpo em considerações sobre o sexo, ioga ou outras experiências dá margem a dois riscos adicionais: focar estritamente na Escritura, afirmando apenas o que o texto explicitamente permite, ou priorizar exclusivamente o bem estar físico, cedendo a uma “espiritualidade” que busca o prazer independentemente do testemunho bíblico. Fato é que a teologia do corpo é uma das doutrinas evangélicas menos desenvolvidas.
A dificuldade de passar da prática para a teologia jamais foi tão clara quanto na abordagem cristã da sexualidade. Culturalmente, o prazer sexual tornou-se um bem inviolável que prevalece sobre qualquer outra consideração; mas uma boa dose de negativismo e medo tem, sem dúvida, desfigurado o ensino evangélico sobre sexualidade. Um veneno adicional para a cobiça de nossa cultura pelo prazer é uma mentalidade atemorizantemente egoísta. O que se diz é que nada deveria privar o crente da satisfação pessoal, exceto a ausência de consentimento mútuo ou a possibilidade de danos físicos (e, por vezes, nem mesmo este último). E muitos evangélicos têm adotado, ainda que às vezes desconfortavelmente, tais atitudes autocentradas. O desafio para uma compreensão evangélica da sexualidade, então, é articular a natureza do prazer e sua relação com a sexualidade de tal modo que não haja espaço para a libertinagem, mas também se evite o puritanismo. Precisamos desenvolver uma abordagem do corpo que evite tratá-lo como um instrumento de prazer pessoal limitado apenas pelo mandamento de não prejudicar o próximo. Caso contrário, acabará se permitindo que atitudes hedonistas e egoístas se infiltrem em nosso ensino e, por fim, solapem o nosso testemunho.
“SACRIFÍCIO VIVO”
O relacionamento entre Cristo e sua Igreja, tipificado nas passagens mais expressivas dos Cantares e exposto de maneira clara nos ensinos do Novo Testamento tem servido, desde sempre, como modelo do amor conjugal entre homem e mulher. Trata-se, sem dúvida , do relacionamento mais básico de abnegação mútua no coração da criação. Embora a ideia de uma sexualidade “moldada em Jesus” possa soar escandalosa, ela aponta o caminho rumo a um Evangelho ideal: o vivido por homens e mulheres que, voluntariamente – como Cristo se deu pela Igreja – subordinem sua busca pelo prazer físico em prol de outro. No mínimo, essa expressão das dimensões do corpo contém uma profundidade que nossos manuais sobre sexo e ensinamentos pastorais, por vezes, têm perdido. Quando Paulo expõe o profundo mistério que existe entre maridos e esposas, no capítulo 5 de sua carta aos Efésios, ele nos recorda que sua referência primária é Jesus e seu povo.
Tal abordagem igualmente fornece importantes recursos para os jovens crentes e solteiros que sofrem mais quando a sexualidade é reduzida a um mero impulso animal ou um elemento essencial do florescimento humano. Exortados a permanecerem virgens em uma cultura que ridiculariza a castidade como uma auto-imposta sabotagem social e biológica, não causa surpresa o fato de jovens evangélicos lutarem para manter vidas sexualmente corretas. Portanto, uma teologia do corpo calcada na autoentrega da cruz pode dar início a uma reformulação na discussão sobre sexualidade e desenvolvimento pessoal, sugerindo padrões de vida física igualmente compartilhados por casados e solteiros. A exemplo da cena do oleiro descrita pelo profeta Jeremias, os crentes nada mais são que barro nas mãos do Senhor – porém, podem ser transformados em vasos de honra.
Em adição, uma teologia evangélica do corpo ajudaria a conter a espiritualidade piegas cuja crescente popularidade enfraquece sobremaneira a distinção do testemunho cristão. A maneira de minimizar o apelo do culto ao físico como uma prática espiritual é recuperar uma compreensão do corpo que torne a prática que vemos na Escritura mais atraente. Tal teologia poderia, igualmente, assumir um tom mais evangelístico. Isso porque jamais a dignidade e o status do corpo estiveram tão em questão quanto hoje. Assim, os evangélicos dispõem da oportunidade de saudar corpos de todos os tipos, concedendo-lhes uma dignidade e valor intrínsecos que, talvez, eles não encontrem em outro lugar.
Quando o apóstolo Paulo exorta os cristãos da igreja em Roma a oferecerem “seus corpos em “sacrifício vivo”, ele está recomendando um ato espiritual de adoração. Sim, o Senhor se importa com nosso corpo e com tudo o que fazemos com ele. Nossa estrutura física nos foi dada como um dom, que, à semelhança dos dons espirituais, deve ser novamente disponibilizado para seu serviço. Como evangélicos, o padrão para o nosso sacrifício deve ser o estabelecido pela cruz, e o poder de nossa entrega deve ser o poder da ressurreição. Caso contrário, nossa ética será mero moralismo e a nossa espiritualidade estará desconectada da singular revelação de Deus ao homem – qual seja, a pessoa encarnada de Jesus Cristo. (Tradução: Fernando Cristófalo)
Matthew Lee Anderson é graduado pelo Torrey Honors Institute, da Universidade de Biola, na Califórnia (EUA) e autor de Earthen Vessels: Why Our Bodies Matter to Our Faith (Vasos terrenos: Por que nossos corpos são importantes para a nossa fé)

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