domingo, 12 de dezembro de 2010

A Doutrina da Justificação pela Fé no Pensamento Paulino

A doutrina da justificação pela fé toma um maior destaque diante do pensamento paulino. O Apóstolo Paulo é quem mais aborda a questão na concepção dos escritores neotestamentário, foi quem mais escreveu sobre o assunto. Paulo formula seu pensamento no tema central sobre a justificação pela fé, onde nenhum homem é capaz de se justificar através das obras da lei, como descreve em Gl. 2:16.

Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois por obras da lei, ninguém será justificado.

A interpretação paulina, na sua última instancia, refere-se a uma salvação não autosotérica, ou seja, o ato de adquiri a salvação por si próprio. O que Paulo ressalta é que ninguém pode seguir a lei em toda a sua esfera e suas determinações, porque nenhum homem é capaz de conquistar a salvação com o seu próprio esforço. Portanto, ninguém conseguirá ser justificado por obras da lei e nem por esforço próprio. Sendo assim, é totalmente correto dizer que a salvação é pela fé mediante a graça de Deus, e não pelas obras, o que resulta dizer que ela “em nada se fundamenta no próprio crente”.[1]
A síntese da mensagem do evangelho, na concepção paulina, é que a justificação é obra da gratuidade de Deus. Qualquer tentativa de alcançá-la através de outro caminho aponta para a auto-suficiência, levando o homem ao pecado. Este fator, no entanto, direciona para um total fracasso humano na tentativa de adquirir a justificação que não seja através da graça meritória de Cristo. Paulo entende que um relacionamento sadio, só pode ser adquirido em sua totalidade através de uma incondicional dependência com Cristo mediante a fé. O que acarreta dizer que as exigências do cumprimento da lei só serão satisfatórias em Cristo que cumpriu toda a lei e consequentemente o cumprimento das promessas em Abraão. Com este conceito, Paulo expressa que, em Cristo, o Deus do Antigo Testamento é fiel à sua promessa e se compromete judicialmente com o homem em absolvê-lo da condenação da lei, gerando assim, uma nova aliança como descreve VanGemeren:

A nova aliança é a administração soberana da graça e da promessa por meio da qual o Pai consagra o seu povo a si mesmo por intermédio tanto do sangue do Senhor Jesus, como da presença do Espírito Santo para a glória que ele preparou para os eleitos.[2]

Assim sendo, a absolvição resulta em liberdade da lei, pois, para Paulo a lei nunca teve um sentido fundamentalmente soteriológico. Ele não podia aceitar o fato de que os fariseus e, até mesmo, os cristãos primitivos pensassem que a salvação oferecida por Deus fosse fruto e conseqüência dos méritos pessoais obtidos pela obediência e submissão à lei e muito menos quando o homem supera suas culpas e infidelidades pelo cumprimento escrupuloso da lei, a fim de sentir-se salvo e amigo de Deus. VanGemere define a questão da lei dizendo que “a lei nunca teve o propósito de ser um instrumento de salvação nem o meio para se receber a herança”.[3] Afonso Garcia Rúbio, entende que “a liberdade vem de Jesus Cristo, da ação do Espírito em nós, não da auto-suficiência proveniente do cumprimento da lei”.[4]
Em Síntese, a lei não tem qualquer poder salvífico, ou seja, a lei nunca foi o fator predominante para que o pecador pudesse adquirir vida. A lei condena o homem e ela é impossível de ser cumprida. Com a lei ninguém se justifica e, nesse caso, o fator primordial é o próprio Cristo que na plenitude de Deus se encarnou e veio ao mundo para resgatar todos que estavam sob a lei, como descreve Gl. 4:4-5.
O cerne é que Cristo veio ao mundo para proporcionar, no tempo certo, a salvação a todos que nele crê, por isso, o homem está debaixo de Cristo e não da lei. Ele se fez a própria lei para o pecador, quando ficou sob a lei de forma encarcional para cumprir o propósito de Deus aos homens como descreve Hodge:

A obra de Cristo continha, pois, a natureza de uma satisfação às exigências da lei. Por sua obediência e sofrimento, por sua justiça perfeita, ativa e passiva, ele, como representante e substituto, fez e suportou o que a lei exige.[5]

Para Hodge, a doutrina da justificação em Paulo não confere uma qualidade ao pecador, porque assim fosse, estaria Paulo baseando e estabelecendo uma soteriologia relacionada à obra. No entanto, é correto dizer que a doutrina da justificação pela fé estabelece uma nova relação pessoal com Deus em Cristo Jesus que cumpriu todas as exigências da lei, para que nEle, fôssemos justificados. Nessa relação Golppelt afirma:

A justificação cria novo relacionamento com Deus e as pessoas. Os capítulos 12 e 13 de Rm. Colocam o crente em amplas condições de relacionamento humano: pela justificação torna-se membro do corpo de Cristo (Rm. 12.91-12) e é introduzido nas regras da vida desse mundo (Rm 13.1-7).[6]

Neste foco, Paulo entra em contraste com o pensamento judaico, pois para os judeus a sentença de absolvição era estar fortemente ligado ao cumprimento da lei e a realização das obras que a lei prescreve. O erro dos judeus, no entanto, consiste em não saber que o termo da lei é cristo, para a justificação.
Em inúmeras vezes, Paulo debate com os judeus dizendo que a lei que prescreve a justiça de Deus é Cristo. E que todos estão debaixo de um pacto. Os judeus, no entanto, desconhecem esse novo pacto, devido à insistência da observância da lei para a salvação. Paulo traz um novo contexto que é o pacto da nova aliança na qual é confirmado no sacrifício vicário e insubstituível de Cristo que aponta para a obra expiatória do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. O ponto chave para obtenção da justiça de Deus não se encontra na circuncisão como os judeus pensavam, e sim, o viver na graça pela fé em Cristo Jesus que pagou com seu sangue o direito de liberdade para os eleitos de Deus, tornando-os assim, livres da morte eterna como conseqüência do pecado. Assim, Paulo afirma aos judeus e não judeus que a base da justificação é o Senhor Jesus Cristo e é através da fé, o instrumento pelo qual todos os homens e mulheres se apropriam da justiça de Deus. E neste caso, o viver em Cristo como homens e mulheres justificadas é mais apropriado que o viver na lei como homens e mulheres escravizadas pela própria lei, como Paulo mesmo escreve em Gl. 5:2-3.
A preocupação paulina é fazer com que os judeus tenham a consciência da incapacidade da lei como meio justificador. Paulo sistematiza que todo homem é pecador, uma vez que, a essência do pecado é o amor ao eu e não a Deus. Portanto, rejeitar a ação salvífica em Cristo é rejeitar o amor de Deus, onde se caracteriza toda fonte de luz. Rejeitar neste caso é caracterizado em pecado, o que resulta em morte, pois, é bem verdade que todos estão propensos e escravizados na legalidade moral que os levam a ser cativos do próprio pecado.
Para Paulo não existe ninguém que possa ser justificado pelos meios de outrem que não seja em Cristo, sua argumentação é no sentido de haver alguém que creia na essência da bondade humana como parâmetro entre o bem e assim, se fazer capaz de salvar-se a si mesmo. É perfeitamente claro nos escritos paulino que a capacidade humana de se libertar com os seus atos são altamente nulos, pois, o homem jamais conseguiu a liberdade em si mesmo, o qual resume dizer que a lei só tem valor em si no seu todo. A afirmação de Paulo é mostrar à obra expiatória de Cristo como satisfatória as exigências da lei, tornando-se assim, a justificação como um ato divino.
O que difere a doutrina da justificação judaica do pensamento paulino é o fato que, no judaísmo, o esforço se dá através do cumprimento dos mandamentos de Deus e das práticas das boas obras, ou seja, quanto mais religioso o individuo ser diante de Deus, mais serão justificadas as suas obras. No obstante, o pensamento de Paulo difere totalmente desta questão. A tese paulina resulta no fato de que só a fé pode fazer com que o homem consiga viver na graça, na misericórdia e na justiça de Deus, como prescreve Rm. 1.17 “o justo viverá por fé”. A fé, portanto, é o instrumento imputado ao pecador para o levar ao arrependimento e conseqüentemente à justificação. A fé, que é dom de Deus, anula toda e qualquer obra do homem em direção a salvação, como descreve Grundem:

Por outro lado é necessário enfatizar que a Escritura não diz que somos justificados por causa da bondade inerente em nossa fé, como se a fé tivesse mérito diante de Deus. Ela nunca nos permite pensar que a fé em si mesma ganha o favor de Deus. Ao contrário, a Escritura diz que somos justificados “por meio da” fé, entendendo que a fé é o instrumento por meio da qual a justificação nos é dada, mas nunca a atividade que nos dá mérito para receber o favor de Deus. Antes somos justificados somente por causa dos méritos da obra de Cristo.[7]

Neste caso, os homens não são justificados pelo que são nem o que fazem, mas pelo que Cristo fez por eles.
Portanto, Paulo se coloca contra a justificação pela lei, devido a que, em Cristo, ele encontrou a liberdade, ou seja, Cristo é o grande libertador. Neste sentido, é bastante categórica a teologia paulina a despeito da doutrina da justificação, em afirmar que, a salvação jamais poderá partir pelo caminho da lei e consequentemente das obras, vis que, a lei, leva o próprio homem ao pecado e a morte, como explica o texto bíblico de Rm. 7.7 “Que diremos, pois? É a lei pecado? De modo nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois na teria eu conhecido a cobiça, se não dissera: Não cobiçarás”.
A idéia paulina é que a lei sinaliza o pecado, mas não justifica. E por esse motivo que se fez necessária a graça meritória de Cristo em favor do pecador.
Partindo desse enfoque, é necessário ver o conceito de pecado em Paulo. Ele parte do ideal de que o pecado é universal, ou seja, com a queda do homem no Éden, toda raça humana herdou de Adão o pecado que tradicionalmente se intitula “pecado original”. Paulo afirma que tanto gregos como judeus e gentios se extraviaram, e todos estão imersos na condição de pecadores culpados diante de Deus. Portanto, é certo que ninguém pode se declarar justo à vista de Deus. Por outro lado, só Deus pode justificar e somente Ele pode conceder este ato ao pecador, proporcionando a liberdade. A liberdade neste caso, não é meritória, ou seja, o homem é livre não pelo que faz ou deixa de fazer em relação às boas obras, e sim, devido a graça de Deus.
Com esse pensamento, o apóstolo Paulo afirma que o pecado na vida humana anula qualquer tentativa de se obter a justificação pelas obras. Até porque, Paulo procura demonstrar a universidade do pecado que afetou toda e qualquer boa obra. Com o pecado, as boas obras não são um fator justificante diante de Deus, porque todos estão na condição de cegos espirituais, e como cegos não podem ir a Deus, como descreve Rm. 3:9-12.
Assim, a humanidade carece da justiça de Deus. E essa justiça é acessível só em Cristo, que surge como única opção para uma humanidade corrupta em sua natureza herdada pelo primeiro homem. O fato é que neste aspecto da teologia paulina, encontra-se um paradoxo, entre a imputação do pecado de Adão e a imputação da justiça de Cristo, como descreve Lewis B. Smedes, “A comparação é que através uma só pessoa trouxe a morte a todos e outra pessoa trouxe vida a todos que nEle crer”.[8]
O sentido de pecado abordado pelo apóstolo Paulo é o mesmo conceito veterotestamentário, ou seja, o homem é escravo do pecado e ele; nesta condição, precisa constantemente fazer expiação por intermédio de um sacerdote para alcançar o perdão. Embora o Antigo Testamento apresentasse uma expiação através do sacrifício de um animal sem defeito ou mácula, Paulo traz o mesmo conceito com mais abrangência. Ele afirma que a expiação de Cristo é mais que adquirir o perdão de Deus; é, na verdade um título que Deus confere ao pecador redimido, o título para a vida eterna. Então a justificação pela fé confere ao pecador em Cristo o direito de cidadania, ou seja, nEle o pecador separado da comunhão em Deus se une ao seu Criador mediante a obra expiatória de Cristo com base da sua própria justiça proporcionando um novo relacionamento em Cristo Jesus.[9]
Paulo apresenta este conceito com a base da doutrina bíblica da justificação em um novo sentido. O sentido apresentado encontra-se dentro da ótica da obra expiatória de Cristo Nela que se dá à redenção dos pecados. Na obra expiatória de Cristo, o homem é liberto de seus pecados. É neste ponto que se fundamenta e solidifica a base da doutrina da justificação, como é exposto por Berkhof.

Com sua obra expiatória, Cristo satisfez as exigências da lei pelo seu povo. Na ressurreição de Cristo dentre os mortos, o Pai declarou publicamente que todas as condições da lei foram preenchidas para todos os eleitos e, com isso, eles foram justificados. Mas aqui também se requer uma distinção cuidadosa. Mesmo que seja verdade que houve uma justificação objetiva de Cristo e de todo o corpo de Cristo em sua ressurreição, não se deve confundir isto com a justificação do pecador a que a Bíblia se refere. Não é verdade que, quando Cristo prestou plena satisfação ao Pai por todos os Seus, a culpa destes acabou naturalmente. O débito penal não é como uma dívida pecuniária, neste sentido. Mesmo depois de pago o resgate, a remoção da culpa pode depender de certas condições, e não ocorre como resultado líquido e certo. No sentido Escriturístico, os eleitos não são justificados enquanto não aceitam a Cristo pela fé, apropriando-se assim dos seus méritos.[10]

Neste ponto verifica-se o homem sendo redimido de seus pecados através da redenção que há em Cristo, que resgatou o pecador pagando um preço de seu precioso sangue, como descreve Rm. 3:24-25.

Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impune os pecados anteriormente cometidos.

A verdade é que, quando Deus Justifica o pecador, Ele não estará declarando-o como homem piedoso, e, sim, perdoando os pecados que foram expiados para receber o título para a vida eterna com base na justiça de Cristo. A Justificação pela fé, no entanto, só tem valor na consciência de que Cristo morreu em favor dos eleitos, fazendo-se Ele mesmo maldição no lugar daqueles que foram justificados. Com isso, o mérito de Cristo confere o direito de sermos justificados mediante a fé e não por obras da lei. A fé neste ponto se torna uma peça fundamental para que os eleitos de Deus sejam realmente justificados, passando assim, a receber os benefícios reservados em Cristo.
Como se pode observar, a lei não pode justificar o homem de seus pecados. Embora seja justa e santa cf. Rm. 7:12, ela não pode ser violada, neste caso, não existe um individuo que consiga através dela alcançar a justiça de Deus. Entretanto, entende-se que a justiça é alcançada por meio da fé, e, é obtido no Espírito, que nos é dado por Deus através de seu imutável amor, elegendo seu filho unigênito, o Senhor Jesus Cristo, como obra expiatória no lugar dos seus eleitos. O Cordeiro de Deus neste caso, é oferecido para expiação de pecados pagando e assumindo todas as dívidas, garantindo assim, um relacionamento justo diante de Deus. Com isso, Paulo dizia que ali exigia a condenação, mas, Cristo foi o único que cumpriu toda lei, pagando alto preço no tribunal da Cruz. A encarnação do Filho de Deus foi fundamental para que os eleitos pudessem adquirir o perdão devido a ação vicária de Jesus e consequentemente, ser justificado diante do Eterno, como descrê Moltmann, “a encarnação do Filho de Deus foi necessária por causa dos pecados do homem, para sua expiação”.[11] Assim sendo, nenhum homem ou mulher teriam condições de assumir a culpa da humanidade e sair inocente diante do veredito de Deus. Foi por isso, que Deus enviou seu filho como sendo o Salvador e único capaz de assumir os pecados da humanidade e mesmo assim, sair inocente diante do Pai.
O fundamento cristológico é o componente principal na qual Paulo se apóia para defender sua tese em relação à justiça Divina. Ele interpreta a partir do evento Cristo, o lugar da justiça de Deus, e a fé é o seu modo de acolhimento na ação salvífica do Eterno. Assim, a teologia paulina, diz que todos devem manifestar uma fé cristológica, seja judeus e não judeus; circuncisos e incircuncisos, para obterem a justiça de Deus de forma que saiam justificados diante dEle.



[1] HODGE, Charles. Teologia Sistemática, p. 1144
[2] VANGMEREN, op. Cit., p. 38
[3] Ibid, p. 35
[4] RUBIO, Alfonso Garcia. Elementos de Antropologia Teológica. p. 92
[5] HODGE, op.cit., p. 1144
[6] GOLPPELT, op.cit., p.380
[7] GRUNDEM, Wayne. Manual de Teologia Sistemática – Uma introdução aos Princípios da Fé Cristã, p. 354.
[8] SMEDES, Lewis B. Grandes temas da Tradição Reformada,  p. 131 e 132 Em. Mckim, Donald K.P (editor)
[9] O pecado de Adão causou a morte, enquanto o ato de obediência de Cristo a vida, através da justificação pela fé.
[10] BERKHOF. op.cit., p. 479
[11] MOLTAMNN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus. p.125

Nenhum comentário: